sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Breve comentário sobre a idéia de “tipo cômico” relacionada à programação do Cineclube da Casa pensada para este ano - por Daniela Landin


Sobre artistas e outros bobos

Há um texto de Fellini em que ele constata, ao lançar olhos ao mundo, que não só a sua aldeia, mas as cidades todas estavam povoadas de clowns. “Quando estive em Paris [...], imaginei uma seqüência, que depois não rodei, em que, andando de táxi, de tanto falar nos clowns, podia vê-los na rua. Velhas ridículas com chapéus absurdos, mulheres com sacolas de plástico na cabeça para se proteger da chuva, [...] homens de negócios com pastas típicas e um bispo, de aspecto embalsamado, sentado num auto junto ao nosso”. E então ele passa, num jogo célere, a se imaginar como um clown e a todos que conhece, entre artistas e outros bobos. “[...] creio que sou um augusto. Mas também um clown branco ou, talvez, o diretor do circo. O médico de loucos que, por sua vez, enlouqueceu. Continuemos a prova. [...] Pasolini é um clown branco do tipo engraçado e sabichão. Antonioni é um augusto desses silenciosos, murchos, tristes. [...] Picasso? Um augusto triunfal, presunçoso, sem complexos, que sabe fazer tudo e no fim é quem vence o clown branco. Visconti, um clown branco de grande autoridade, cujo faustoso traje impressiona. Hitler, um clown branco. Mussolini, um augusto. [...] Freud, um clown branco. Jung, um augusto”. E assim por diante...

A seara por excelência dos tipos cômicos é a da cultura popular. Como nos lembra Luís Otávio Burnier, desde a chamada baixa comédia grega e romana, há figuras cômicas características desse período que originaram mais tarde os bufões e os bobos da Idade Média, as personagens fixas da commedia dell’arte, o palhaço circense e o clown. Todos portadores de uma mesma natureza, a de expor a estupidez do ser humano, relativizando normas e verdades sociais.

Nos séculos XV e XVI, surgiu oficialmente a commedia dell’arte, como síntese de uma tradição cômico-popular existente desde a Antiguidade, ou “comédia de máscaras”, uma forma de teatro do Renascimento italiano que teve origem na arte da mímica, das comédias formais do período romano e dos atores-jograis ambulantes da Idade Média. Entre diversas outras características, a commedia dell’arte possuía personagens fixas cujas máscaras próprias revelavam o caráter pessoal de cada uma. Dois desses tipos fixos eram os zanni, os servos, que, de alguma forma, influenciaram o surgimento da dupla de clowns. O primeiro era astuto e inteligente, fazia intrigas, blefava, enganava os patrões. Era o Brighella. E o segundo, um criado confuso, inconseqüente e tolo, o Arlecchino. Estamos diante, portanto, dos rudimentos da dupla de clowns branco e augusto.

O clown branco é a encarnação do chefe, do intelectual. O augusto – ou excêntrico – é o bobo, eterno perdedor, ingênuo e emocional que está sempre sujeito ao domínio do branco, mas, geralmente, supera-o para fazer triunfar a pureza sobre a malícia. Um caso exemplar dessa parceria cômica no cinema está no filme do mestre Pier Paolo Pasolini, Uccellacci e Uccellini, em que Totò e Ninetto Davoli, pai e filho, e ambos marginalizados, explorados – e também exploradores – protagonizam algumas das mais belas cenas que problematizam a questão do poder.

É possível recordar das idéias discutidas pelo crítico literário Antonio Candido, em sua Dialética da malandragem, célebre ensaio sobre a personagem central do livro Memórias de um sargento de milícias (de Manuel Antonio de Almeida), em torno da figura do “pícaro”. De acordo com Candido, o termo se refere a um tipo inferior de servo que, passando de amo a amo, move-se, muda de ambiente, acumula experiência. Tal ser, geralmente amável e risonho, é extremamente espontâneo e aderente aos fatos, vivendo um pouco ao sabor da sorte, mas aprendendo com cada vivência. E é justamente esse aprendizado que, nas palavras do crítico, faz o pícaro entender a vida à luz de uma filosofia desencantada.

Fazendo uma última referência a filmes que compõem a programação para este ano do Cineclube da Casa, uma atenção especial faz-se necessária à figura do caipira, que pode ser entendido como um clown. Igualmente tipos marginais e ineficientes dentro de um contexto hegemônico de mercado e produtividade, são também espontâneos e ingênuos na manifestação de uma lógica particular. Tanto o caipira quanto o clown, essencialmente éticos e ligados à expressão popular, tornam-se cômicos no momento em que assumem a fraqueza e o ridículo humanos.

E eles estão por aí, os tipos cômicos. Se tivermos coragem e disposição para o jogo proposto por Fellini, podemos em uma tarde dessas, abrirmos nossas janelas internas, em horário de pico, em que tantos podem ser vistos pelas ruas, e observá-los descendo aos montes pela rampa de estações de Metrô, comendo churrasco grego ou cachorro-quente na barraquinha da calçada, acumulando-se nos pontos de ônibus, esperando, em praças diversas, por alguém ou por ninguém – um Deus qualquer –, perambulando, pedindo dinheiro ou atenção, indo para casa, para o trabalho, para lugar nenhum. E todos ali, tipos cômicos em essência, esbanjando um lirismo patético e absurdo.

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